“És pó, e pó te hás de tornar.”(Gen 3,19)
Na Quaresma, somos convidados a reconhecer esta verdade profunda que encontramos logo nas primeiras páginas da Sagrada Escritura. È um tempo de arrependimento e de conversão apropriado para aqueles que, reconhecendo-se longe do Senhor, desejam – como o Filho pródigo - regressar à Casa paterna, na qual há “pão com fartura”.(Lc 15,17)
A Igreja faz uma convocação geral, como nos tempos do profeta Joel (Jl 2,12-18), propondo a todos que se reconheçam pecadores, indignos da Misericórdia Divina, e se penitenciem praticando a oração, o jejum e a esmola. Não acho que seja necessário conceituar cada um destes. E acho igualmente desnecessário repetir os apelos que a Igreja faz e que a Palavra de Deus constantemente nos recorda. Prefiro partir para o oposto disso: gostaria de dizer o que não é oração; o que não é jejum, e o que não é esmola.
Tenho percebido que, hoje em dia, a oração - principalmente nos grupos de oração - não é mais diálogo, como propõe Santa Catarina de Sena, a Dominicana mais penititente que o mundo já conheceu. È como se rezar se resumisse a falar, falar e falar. Não há mais os momentos de escuta do Senhor. Não há mais a voz que ressoa no silêncio. O eco que se propaga na alma do homem. O louvor de hoje em dia, muitas vezes se assemelha ao balançar das folhas de uma árvore: não mexe na sua raiz, não a faz produzir frutos, é, simplesmente, resultado do vento que passa...
Temos feito orações mal feitas. Orações que não se comparam jamais àquelas feitas pelo Senhor! Pois Jesus não só rezava: Jesus rezava bem. Jesus rezava com confiança: “Pai eu te dou graças porque me ouviste” (Jo 11,41). Orava com fervor: “Então Jesus exultou de alegria e disse: Eu te louvo Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos”.(Lc 10,21) Rezava colocando acima de tudo a vontade de Deus: “Se queres, afasta de mim esse cálice”(Mt 26,39). Rezava com sinceridade: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). Não rezava com a falsidade que muitas vezes nos faz dizer a Deus o “eu Te amo” mais vazio que alguém pode ter ouvido. Certamente Jesus não faria do terço um vomitar de palavras no ouvido de Nossa Senhora, como nós amiúde fazemos...
Aliás, faço aqui uma distinção conveniente e mui útil para que reconheçamos como é imperfeita a nossa oração: oração anestésica é diferente de oração transformadora! Oração anestésica é aquela que resolve meus problemas atuais. É aquela oração do tipo reboco, tapa-buraco. A oração transformadora, porém, tem efeitos profundos no nosso comportamento e mentalidade. Mas, não gostamos dela porque ela produz resultados a longo prazo e nós somos muito imediatistas... Enquanto a oração anestésica me mantém vivo, a oração transformadora me faz viver. Para ilustrar: Se alguém me machuca e eu faço a seguinte oração: “- Senhor, arranca do meu coração a mágoa que essa pessoa me causou. Preenche com o teu amor o vazio que essa pessoa me deixou”, estou tomando um anestésico espiritual. Estou me livrando daquele rancor específico, e todas as vezes que essa pessoa me machucar vou ter que repetir a mesma oração. Nunca conseguirei entender o que é o perdão. Jamais compreenderei o porquê daquela atitude. Não entenderei que quando perdôo alguém não estou me livrando de um a mágoa, estou me tornando livre para amar. A oração transformadora, todavia, me permite enxergar toda essa realidade, porque mexe nas minhas bases, nas minhas estruturas. Ela muda a minha conduta, me dá uma lição de vida e me tira da superficialidade que comumente afeta a relação do homem com o seu Criador.
Além disso, Jesus rezava em segredo: “... subiu à montanha para orar na solidão” (Mt 14,23). Seguindo o preceito que lê mesmo instituiu: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa.
Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á”(Mt 7,5-6)
Depois, é preciso falar a respeito do jejum e de outras renúncias. Tenho visto um mal muito grande se espalhando entre nós, católicos: é a síndrome do “coitadinho de mim”. É a nossa autopiedade. Dizemos que não jejuamos porque estamos morrendo de fome. Quando, na verdade, a maioria de nós não tem a mínima noção do que significa morrer de fome... Sem falar daqueles jejuns absurdos, que alguns escolhem fazer: “- Durante toda a Quaresma não vou tomar suco de cupuaçu”.Se eu não gosto de suco de cupuaçu, que valor tem essa renúncia? Sem contar aqueles penitentes do tipo autofalante, que saem alardeando aos quatro cantos qual o objeto da sua renúncia durante a Quaresma: “- Por amor ao Senhor, nesses quarenta dias, não vou comer chocolate”. Balela, conversa fiada. Quer é emagrecer. Está dando a Deus aquele famoso “presente de grego”.
Penso que santos como Santa Catarina de Sena, São Francisco de Assis, São Domingos, e tantos outros, reconhecidos pela prática constante do jejum e da penitência, muito se envergonham dessa nossa conduta. Não só eles, mas também penitentes desconhecidos da maioria de nós, como os monges cartuxos. Estes, professam um a regra de vida tão austera que nunca comem carne, nem mesmo quando estão doentes. Certa vez, o papa Urbano V, quis mudar essa regra, tornando-a mais branda. Os monges, porém, contestaram, enviando ao Sumo Pontífice uma Delegação de 27 religiosos. Entre estes, o mais jovem tinha 88 anos! Diante disso, o Santo Padre desistiu dos seus planos de alterar a regra. Esta, parecia não fazer mal algum a saúde - nem do corpo, nem da alma - dos monges...
E, por fim, mas não menos importante, creio que devemos rever a nossa concepção de esmola. Não estou falando de uma doação forçada, como muitas vezes fazemos, por pressão social. Nem estou falando do assistencialismo barato que nos faz jogar aos miseráveis, as moedas que nos pesam nos bolsos. Não me refiro à doação feita por pena, mas sim por obra de misericórdia. Não estou me referindo a uma obrigação cristã, como é o dízimo, mas sim a uma contribuição voluntária, feita por amor e destinada a anônimos cujo nome é Jesus.
Também não quero associar à esmola àqueles casos de filantropia que vemos quando ocorre um grande desastre, como foi o Tsunami algum tempo atrás. Aquilo não é esmola! “Os países ricos se mobilizaram para ajudar”.Para ajudar a quem? A si mesmos, incluindo seus nomes entre os países “bonzinhos” que compõem a lista de doadores! “Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo; e teu Pai, que vê o escondido, recompensar-te-á” (Mt 7,2-4). Quantos dos famosos artistas generosos que fizeram doações milionárias às vítimas do tsunami compareçam lá, ao local do desastre, dando por esmola seu tempo, sua atenção e sua verdadeira solidariedade? Esmola não é sinônimo de dinheiro!
Diante de tudo isso, resta-nos reconhecer que somos pó e ao pó retornaremos. Contudo, não esqueçamos que importante é estar nas mãos de Deus, pois o pó nas mãos do Senhor é barro, o qual se torna obra de arte quando modelado pela vontade do Divino Oleiro. Quiçá um dia nos tornemos preciosos vasos, prontos a guardar os tesouros do Senhor. Se queremos alcançar essa graça, penso que devemos começar guardando esse tempo de Graça e Misericórdia que a Igreja nos concede, a Quaresma. Deus nos abençoe!
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