21 janeiro, 2006

Eu mereço o Inferno.

Ninguém merece a própria salvação. Essa frase pode parecer protestante, mas não é. É catolicíssima. E achei por bem escrever algumas linhas sobre ela.


Quando nós falamos que a salvação não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus (Ef 2, 8), queremos dizer exatamente isso: o homem não merece a própria salvação, por mais que ele seja "bonzinho". Não a merece, porque a Salvação, a Vida Eterna, é coisa infinitamente maior do que tudo que o homem pode ser capaz de fazer.


A diferença entre a versão católica e a versão protestante desse conceito é a seguinte: para os protestantes, o homem absolutamente não merece a Salvação, de forma alguma, nem recompensa alguma dos Céus: é Deus que, sozinho, realiza todo o trabalho de salvar o homem. É o conhecido Sola Fide, que nega o valor das obras; estas servem tão-somente para "mostrar", "evidenciar" a Fé.


A versão católica diz que o homem não merece a Salvação, mas passa a merecê-la de uma forma bem específica: da forma que Deus determinou. Que forma é essa? Por meio da Graça Santificante: sozinho, o homem é incapaz de fazer qualquer ato que seja minimamente meritório; contudo, em Estado de Graça, as suas obras passam a merecer recompensas, porque são feitas unidas a Deus. O homem coopera com Deus na própria salvação. É a conhecida frase de Santo Agostinho: o teu Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti.


Esta foi a forma que Deus "encontrou" para tornar o homem co-responsável pela própria Salvação: embora os atos dele, por serem humanos, sejam ínfimos diante da Infinitude Divina e, justamente por isso, não sejam dignos de recompensa alguma, Deus vem "morar" na alma do homem e, a partir daí, as obras do homem são "também" obras divinas, por serem feitas em união com Deus e, assim, tornam-se dignas de recompensa.


Não sei se me fiz entender: as obras humanas, feitas sozinhas, não têm valor, porque o homem decaído não merece nada dos Céus. Já as obras humanas, feitas em união com Deus, têm valor, sim, por causa da Graça Divina que a elas dá esse valor.


Decidi escrever sobre o assunto porque percebo um problema sério na concepção de Deus que as pessoas, atualmente, têm: Deus deixa de ser Justiça, e passa a ser pura Misericórdia. As pessoas perdem a consciência do pecado, e perdem a consciência de que merecem o Inferno! Essa é uma noção que deveria estar sempre presente em todos os cristãos, não como desespero, que é pecado, mas como um humilde reconhecimento de um fato: eu mereço o Inferno.


Quais as consequências da noção de Deus como Pura Misericórdia, e do esquecimento do fato de que o homem merece o inferno? Vai-se para o outro lado e as pessoas defendem, às vezes inconscientemente, que o homem merece o Céu.


Chesterton, no seu livro "Ortodoxia", nos diz uma coisa muito interessante. Ele afirma que o dom da vida é uma graça absolutamente imerecida e que, por ser imerecida, o homem não tem direito de reclamar de nenhuma das "condições" inerentes a ela. E aí faz uma comparação com os contos de fadas. Reproduzo abaixo essa passagem:


As fadas madrinhas parecem, pelo menos, tão severas quanto as outras madrinhas. Cinderela recebeu uma carruagem vinda do País das Maravilhas e um cocheiro vindo não se sabe de onde, mas recebeu, também, uma ordem [...] - devia estar de volta à meia-noite.
[...]
Se Cinderela diz: "Por que eu tenho que sair do baile à meia-noite?", a madrinha poderia retrucar: "Por que podes ficar lá até a meia noite?".
(G.K. Chesterton, Ortodoxia, p.79-80. São Paulo, LTR, 2001)


Qual o pernsamento de Chesterton? Se uma coisa é extraordinária, ela pode, muito bem, ter condições também extraordinárias. Cinderela recebeu, de graça, da fada madrinha, uma ida ao baile; acaso poderia ela reclamar das "condições" nas quais o recebeu? Igualmente, o homem recebeu, de graça, de Deus, a possibilidade de ir para o Céu. Acaso pode o homem barganhar com Deus e exigir ir para o Céu de uma maneira diferente daquela que o Altíssimo determinou?


Isso tem uma aplicação concreta e visível na nossa vida de cristãos. Devemos sempre ter a consciência de que o nosso passaporte para as Moradas Celestes é uma coisa completamente imerecida, e que possui condições bem determinadas para que tenha validade. Não adianta reclamar "ah, eu tenho aqui o passaporte". Oras, por que você tem o passaporte?


O homem não tem direito à Salvação. Não a merece. E as pessoas dos nossos tempos se esquecem disso. Dou só dois exemplos.


O primeiro: um amigo dizia, dia desses, que a esposa dele, mesmo sendo separada e "casada" com ele, ia à Missa e comungava, porque "Deus sabia o que se passava no coração dela". Isso é uma aplicação concreta daquele pressuposto acima: "eu mereço o Céu". Oras, quem é que merece comungar? Ninguém. A comunhão é-nos dada gratuitamente, sem que mereçamos. E existem condições para que se comungue. Uma pessoa, que não merece comungar, exigindo o seu direito de fazê-lo, mesmo descumprindo as condições exigidas, é semelhante à Cinderela que bate o pé com a Fada Madrinha e exige ficar no baile até as três da manhã. Cinderela não tem esse direito. Nem a esposa do meu amigo.


O segundo: a salvação dos protestantes. É praticamente um dogma do senso comum que os hereges, porque "louvam a Deus" e "seguem a Cristo", estão fazendo a sua parte para se salvarem. Não estão. Isso é, de novo, a aplicação do princípio errado de que "o homem merece a Salvação". Parte-se do pressuposto que, por serem "bonzinhos", por "lerem a Bíblia", por "evitarem o pecado", os hereges "merecem" a Salvação. Não merecem. A Salvação é-nos dada gratuitamente, sem que mereçamos, e tem condições bem específicas para ser recebida, entre elas, a submissão ao Romano Pontífice. Descumprir essas condições e, ainda, esperar receber benevolência do Alto, é ser Cinderela de beicinho, duvidando de que, se ficar no Baile até depois da hora permitida, suas vestes de gala serão transformadas nos trapos da Gata Borralheira.


Por isso que o Magistério da Igreja sempre ensinou que é um erro "esperar bem da salvação eterna daqueles todos que não vivem na verdadeira Igreja de Cristo" (Syllabus, 17).


(Aqui, faço um rápido comentário, para dissipar possíveis equívocos sobre a Doutrina Católica: os protestantes e demais que vivem fora da Igreja não vão necessariamente para o Inferno. Porque a Igreja sempre ensinou que, fora de suas estruturas visíveis, há a salvação dos que estão em Ignorância Invencível, sobre a qual posso falar em outra ocasião. São, pois, dois erros opostos sobre os que vivem fora da Igreja: esperar que eles sejam salvos, ou negar-lhes qualquer possibilidade de salvação.)


São essas as considerações que julguei por bem fazer sobre esse tema. Que nós não nos esqueçamos, jamais, da moral da terra dos Contos de Fada; que nós, à semelhança de Cinderela, recebamos humildemente as graças que nos são concedidas junto com as exigências que nos são feitas, sem reclamarmos um pretenso direito que não temos. E que tenhamos sempre a consciência de sermos merecedores do Inferno; e, com os olhos voltados para o Alto, peçamos a Deus clemência e misericórdia, com a firme esperança de que Aquele que é Bom vai nos atender, não porque somos bonzinhos e fazemos tudo certinho, mas simplesmente porque Ele é Bom.


A paz e as Bênçãos de Deus.

10 janeiro, 2006

Aux Armes, Chrétiens!

O título do Blog - Aux Armes - é retirado da Marseillaise, o Hino Nacional francês. Embora retirado de uma péssima fonte - música revolucionária anti-católica -, o brado que é um convite à batalha soaria bem nos nossos tempos de comodismo e covardia. Porém, para evitar os sentimentos negativos que a similaridade com a música original poderia evocar, julguei por bem fazer uma importante substituição. Ao invés do "Aux armes, citoyens!" francês, pus um "Aux armes, chrétiens!" cristão. Às armas, cristãos! Este é um grito que bem poderia ter sido dado por Urbano II, ao convocar a Primeira Cruzada, e bem poderia ter motivado a resposta dos cavaleiros franceses: Dieu le veut! Deus o quer!

Aux armes, chrétiens! Eis que a Santa Madre Igreja é atacada por todos os lados, e importa que nós, enquanto soldados de Cristo, estejamos sempre em prontidão, para defendê-lA!

Aux armes, chrétiens! Eis que a Moral, Divina e Imutável, é diuturnamente ofendida e debochada, e eis que os atos mais bárbaros, moralmente inaceitáveis, são defendidos pelo Direito Positivo, e importa que cada um de nós, enquanto "outro Cristo" - Christianus Alter Christus -, possa dar um testemunho de vida em Seu favor!

Aux armes, chrétiens! Eis que o Reino de Cristo é constrangido e restrito à "esfera privada", eis que as grandes nações católicas sucumbem diante de um feroz laicismo, e importa que nós, enquanto servos de Cristo, trabalhemos pela construção do Seu Reino que pedimos no Pai Nosso!

Aux armes, chrétiens! Eis que a Verdade é ridicularizada, eis que o indiferentismo grassa solto, eis que o relativismo impera e os homens tentam colocar as suas próprias vontades como métrica última de todas as coisas, e importa que nós, enquanto cristãos, proclamemos a Verdade de cima dos telhados!

Aux armes, chrétiens! Eis que os inimigos da Igreja estão dentro mesmo d'Ela, traindo-A covardemente quando A deviam defender, e denegrindo-Lhe quando A deviam promover. N'outros tempos, Cristo Nosso Senhor expulsou a chicotadas os vendilhões do Templo. Hoje em dia, a Casa de Deus anda bem cheia de vendilhões. E importa que nós A defendamos, pelos que não A querem defender, e A anunciemos, pelos que não A querem anunciar.

Enfim! Aux armes, chrétiens! Dieu le veut!

04 janeiro, 2006

Encontramos o Messias!

"Invenimus Messiam" (Evangelium Secundum Ioannem, I, 41)

Essa é uma frase tirada do Evangelho de hoje. André, irmão de Pedro, após ter estado com Jesus, vai até o seu irmão e lhe diz: invenimus Messiam.

"André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido João e que o tinham seguido. Foi ele então logo à procura de seu irmão e disse-lhe: Achamos o Messias (que quer dizer o Cristo)". (Jo 1, 40-41)

Essa passagem pode muito bem ser tida como um resumo da busca pela Verdade, da sede de Deus que há na alma humana. André procurava o Messias. André encontrou o Messias. André anunciou o Messias.

Não é essa a ordem que devemos seguir? Temos sede de Deus, buscamos a Deus, encontramos a Deus, anunciamos a Deus. A mesma idéia está exposta em outras passagens das Escrituras, mas, aqui, ela é bem forte, é um claro chamado: se nós, verdadeiramente, encontramos a Cristo, devemos anunciá-Lo. Após encontrarmos o amor de Deus, após enchermo-nos dele, devemos naturalmente transbordá-lo.

Não é novidade para ninguém o caráter missionário do Evangelho. Mas quero chamar a atenção para o fato de que este anúncio, antes de ser um mandamento - e ele o é, como encontramos em outras passagens, tais como Mt X, 27 e Mc XVI, 15 -, é (ou pelo menos devia ser) um movimento voluntário, um impulso natural da alma que encontrou a Deus. Depois de um encontro com o Senhor, depois de encontrarmos o Messias, desejamos (ou pelo menos devíamos desejar) sair correndo à procura dos nossos irmãos, e dizer-lhes: invenimus Messiam.

Isso porque a Verdade é um Bem. E é próprio da Caridade - maior das virtudes - amar ao próximo. Amar é desejar o bem. Ora, que bem pode ser maior do que a Verdade? Portanto, amar o próximo é desejar que ele chegue ao conhecimento da Verdade. Por isso o anúncio - invenimus Messiam - é um impulso natural da Caridade, uma decorrência natural do encontro com Deus. Afinal, um encontro com Deus não deve (ou pelo menos deveria) aumentar em nós a Caridade?

Por isso, devíamos sempre ser como aquele mensageiro, do qual nos fala o profeta Isaías, e que cantamos, muitas vezes, na Aclamação ao Evangelho, lá na Missa:

"Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação, que diz a Sião: Teu Deus reina!" (Is 52,7)

Devíamos ser sempre como esse mensageiro, levando a Boa Nova e anunciando a libertação. Não uma "boa nova" qualquer, não uma libertação distante, mas uma libertação presente e atual, da qual somos provas vivas, uma libertação que vimos e ouvimos, que tocamos com nossas mãos (cf 1Jo 1, 1-3)! Só assim o nosso anúncio poderá ser verdadeiro, só assim ele poderá provocar conversões. Não devemos simplesmente dizer "há o Messias". Devemos, como testemunhas verdadeiras, dizer "encontramos o Messias"!

Mas, para dizermos isso verdadeiramente, é necessário que O tenhamos encontrado. E a doce afirmação do Evangelho - encontramos o Messias - pode se transformar numa angustiante pergunta: encontramos o Messias?

Se O encontramos, por que não somos tão ligeiros e prestativos em dizê-lo aos quatro ventos, de cima dos telhados? Se ainda não O encontramos, o que nos falta? Qual o problema?

Que possamos rezar - afinal, é na oração que o homem se encontra com Deus - nesse sentido. Rezemos, para que encontremos a Deus. Rezemos, para que O conheçamos e encantemo-nos com Ele. Rezemos, para que Ele aumente em nós a Caridade, e nos inflame a alma com um incontrolável desejo de correr até nosso irmão e dizer-lhe, com sinceridade: invenimus Messiam!