17 julho, 2006

“O que tens na mão?” - por Gustavo Souza

“O que tens na mão?” (Ex 4,2)


Essa é a pergunta que Deus faz a Moisés quando este tenta se esquivar de sua missão. Deus o convida a libertar Israel da mão do Faraó, mas Moisés arruma mil desculpas – todas elas esfarrapadas – para se escusar de sua tarefa.

É interessante perceber que Deus sempre usa aquilo que está em nós para cumprir os seus desígnios. No Episódio da sarça ardente (Ex 3.4, 1-17) essa realidade fica bem evidente. Primeiro Deus usou a curiosidade de Moisés: Quando ele apascentava o rebanho do sogro, vê uma sarça ardendo sem se consumir; algo como uma chama inextinguível, uma labareda que jamais se apagava, nem arrefecia. Moisés então diz: “Vou me aproximar para contemplar esse extraordinário espetáculo, e saber por que a sarça não se consome” (Ex 3,3).O extraordinário atraiu Moisés ao Extraordinário; ele iria conhecer não só os Mandamentos de Deus, mas o próprio Deus dos Mandamentos. Entretanto ser atraído pelo extraordinário espetáculo é particularmente perigoso porque se corre o risco de nos tornarmos superficiais. De parar no fenômeno e não enxergarmos o Autor do fenômeno. Corremos o risco de não perceber Deus nas coisas simples, no ordinário. É, aliás, uma mania antiga que nós temos: achamos que Deus está no fogo ardente, no vento impetuoso e nos terremotos, e esquecemo-nos de que ele se encontra na suavidade da brisa (I Rs 19,11-12). Mas ainda assim, correndo todos os riscos, a primeira “isca” que Deus usou para fisgar Moisés foi a curiosidade.

Depois Deus usou o nome de Moisés. Moisés significa saído das águas. Chamando-o pelo nome Deus mostra que o conhece, que quer cativá-lo. Deus sabia quem era Moisés e mesmo assim o escolheu.

Deus usou também a disponibilidade de Moisés. No momento em que Moisés mostra interesse, se aproxima, é então que o Senhor se lhe revela. Pois quando Iahweh o chama pelo nome a resposta de Moisés é a que aparece ao longo de toda a Sagrada Escritura na boca dos que servem a Deus de modo autêntico: Eis-me aqui! Lembremos que Deus usou a disponibilidade de Maria para cumprir seu projeto de salvação. A disponibilidade é uma arma muito poderosa nas mãos de Deus. Em certa medida, podemos dizer que sem ela não há redenção.

Moisés então reclama que não tem o dom da palavra. E Deus usou Aarão para cumprir sua vontade. Daquela hora em diante, disse o Senhor, Aarão seria para Moisés uma boca e Moisés lhe serviria de Deus. (Ex 4,16). Muitas vezes somos “ricos demais”, a ponto de nos tornarmos cegos e não percebemos que o irmão – quem quer que seja ele - pode ser um canal da graça de Deus para mim. Muitas vezes o orgulho nos impede de enxergar que Deus não depende de nós. E que, se Ele não me usar para fazer determinada coisa, usará outra pessoa. Mas os seus projetos sempre se cumprem.

Mas o ápice dessa pedagogia divina (de usar o que esta em nós) acontece quando o Senhor pronuncia a seguinte frase: “Que tens na mão?” Moisés responde: “uma vara”. E Deus usou a vara de Moisés para realizar prodígios diante do próprio Moisés, do Faraó e de todo o povo de Israel. Semelhante pergunta Jesus fez aos apóstolos quando realizou a primeira multiplicação dos pães.(Mc 6,38). Jesus usou o que tinham e alimentou mais de 5 mil homens sem contar mulheres e crianças. Mas, hoje me dia, já não somos crianças generosas como aquela que deu ao Senhor os cinco pães e os dois peixes para que Ele os multiplicasse. Depois de ressuscitado Cristo também pergunta aos apóstolos o que eles tinham para comer. E Deus usa a comida que eles lhe oferecem para provar que está vivo, ressuscitado, e que não é um fantasma. Comendo com eles Jesus mostra que é o mesmo ontem, hoje e sempre.

Na verdade tudo isso faz parte de uma “técnica” de Deus para nos conquistar. A dominicana de Sena nos ensina: “Criei-vos sem vossa colaboração; não pedistes para existir; mas sem vosso concurso não vos salvarei”.(Santa Catarina de Sena, O Diálogo, 36.2). Isso não é uma necessidade, mas um desejo de Deus. Nos apenas participamos das realizações de Deus.

Um dos grandes problemas do mundo moderno é que temos negado a Deus aquilo que temos. Não temos dado ao Senhor o que é d’Ele. Temos tirado as ferramentas de Deus e dado as costas para a sua vontade. Quantos de nós andamos escondendo aquilo que temos, como aquele servo mau e preguiçoso que enterrou seu talento (Mt 25,26)? Quantos médicos cristãos há que nunca deram uma hora de consulta para o Senhor? Quanto advogados nunca lutaram para que fosse feita justiça aos pobres? Quantos professores, contadores, músicos, psicólogos, pedagogos, dentistas, administradores, pedreiros, encanadores, que nunca colocaram ao serviço de Deus os seus dons, as suas profissões? Quantos há que moram nas ruas sem que lhes ofereçamos um pouco do conforto que temos? Quantos há que passam fome e não participam dos nossos rodízios de pizza, de carne ou do que quer que seja? Quantos sedentos há que dariam tudo por um pouco daquela coca-cola que bebemos mesmo sem ter sede, apenas por vício? Quantos há que passam frio enquanto nós dormimos sob nossos edredons?

Dar a Deus aquilo que temos e permitir que Ele use o que está em nós não é fruto da nossa generosidade. Simplesmente porque nós somos egoístas e em nós não há nenhum vestígio de generosidade. Ser caridoso e doar-se é apenas gratidão. É retribuir e partilhar, com o próximo, tudo o que temos nas mãos, tudo aquilo que Deus nos deu.

O que tens na mão?(Ex 4,2). Que essa pergunta possa ecoar em nós e que ela nos faça repensar no nosso serviço e na responsabilidade que temos de usar os talentos que recebemos para a glória de Deus e salvação das almas.

29 maio, 2006

A Guerra pela Verdade

Depois de muito tempo OFF, voltemos à ativa. =)
Se existe um assunto que volta e meia surge aqui e alhures, tão velho quanto o próprio cristianismo e, contudo, tão celebrado como se fosse a última novidade da liberdade de pensamento e da emancipação do homem do jugo da religião, este assunto é a ofensa, direta ou indireta, escancarada ou velada, à Igreja Católica.

Não é novidade. O próprio Cristo já nos adverte:

"Se me perseguiram, também vos hão de perseguir". (Jo 15, 20b)

Se, pois, Aquele por quem os Céus e a Terra foram criados não foi poupado das calúnias e das zombarias, por que é que nós, miseráveis e pecadores, esperaríamos assim o ser? As palavras do Evangelho são claras: Cristo foi perseguido. Assim, também os cristãos foram, são e sempre serão perseguidos.

Foi assim desde a época do Império Romano, quando os cristão eram acusados de toda sorte de atrocidades, de canibalismo (distorção cretina da Eucaristia, diante da qual resisto a conceder o beneplácito da ignorância) e de assassínio ritual (coisa para a qual não consigo encontrar justificativa - talvez o Batismo, pelo qual as pessoas eram sepultadas com Cristo?), etc. Diante dos romanos, Tertuliano[1] já se defendia:

"Monstros de maldade, somos acusados de realizar um rito sagrado no qual imolamos uma criancinha e então a comemos, e no qual, após o banquete, praticamos incesto, e os cães, nossos alcoviteiros, pois não, apagam as luzes para na imoralidade da escuridão nos entregarmos a nossas ímpias luxurias!

Isto é o que constantemente usais para nos perseguir, embora não tenhais tido o cuidado de elucidar a veracidade de tais coisas de que somos acusados há tanto tempo. Tragam, então, esse assunto à luz do dia, se acreditais nisso, ou não lhes deis crédito, se nunca investigastes a respeito. Com base nesse dissimulado jogo, somos levados a vos esclarecer que não é verdade um fato que não ousais investigar". (Apologia, cap. VII)

Muitas pessoas já disseram isso antes, e creio que até eu já o tenha escrito algures, mas nunca é demais repetir: a Verdade gera o ódio. Dos maus. É apanágio da Verdade provocar o amor dos bons e o ódio dos maus. Este é o Seu privilégio, e a Sua honra. A Verdade é dura, e une e separa. Une ao Seu redor os que A amam - os católicos, organizados na Verdadeira Igreja - e separa destes os que A detestam - os inimigos da Igreja, a Anti-Igreja, a Sinagoga de Satanás, a Cidade dos Homens. O próprio Tertuliano já o dizia: << A Verdade e a aversão à Verdade vieram ao mundo juntas >> (op. cit, cap. VII).

O fato - nunca é demais repetir - é que o motor da História é a luta dos servos de Deus contra os servos de Satanás, da Cidade de Deus contra a cidade dos homens. Santo Agostinho falava sobre essas duas cidades, dizendo que do amor a si próprio até o desprezo de Deus nasce a Cidade dos Homens, e do amor a Deus até o desprezo de si próprio nasce a Cidade de Deus. Esta, esforça-se para glorificar a Deus e salvar almas. Aquela, procura incessantemente ofender a Deus e levar as almas à perdição. É uma verdadeira guerra, a mais importante de todas as guerras, pois o que está em jogo é a própria razão de ser da Existência, é o fim último da Criação, é a Glória de Deus e a salvação das almas.

E, se estamos numa Guerra, é mister combatermos. A Igreja, peregrina na terra, é chamada de Igreja Militante. Militante, por quê? Porque os católicos são soldados de Cristo, com a obrigação de, sempre alerta, defenderem o Bem e a Verdade, Deus e a Igreja, que diuturnamente são atacados por seus inimigos. Perseguições, sempre houve e sempre as vai haver. Mas importa que, ao lado delas, haja os defensores da Verdade; importa que os católicos não sejam omissos, e não capitulem diante dos ataques que lhes são dirigidos com fúria. Importa que os soldados de Cristo estejam sempre em prontidão, para impôr resistência às ofensivas de onde quer que elas venham.

Hoje, os ataques são os mais variados possíveis. Os blasfemos genitais feitos com terços da Márcia X[2], o insidioso "habemus cocam" de Evandro Prado[3], o "Evangelho" de Judas, o "Código da Vinci", a crucificação de Madonna[4]... essas coisas "passam como vento", alguns podem dizer. Errado; elas até passam, mas deixam as suas marcas. Essas coisas, por pequenas que sejam, vão minando o senso de sagrado, enfraquecendo a fibra dos católicos, destruindo, às vezes inconscientemente, o tesouro da Fé. São coisas passageiras, sim, mas não como vento: como flechas envenenadas. Que machucam, e das quais precisamos nos defender.

Como podemos nos defender? Vittorio Messori propôs[5], há alguns meses, uma Liga anti-difamação. A proposta é excelente, mas falta operários. O que podemos fazer, em um nível menor? Ou melhor, o que devemos fazer? Devemos defender a Verdade, onde quer que Ela seja atacada: em casa, na Universidade, no Trabalho, onde quer que estejamos. Afinal, nos dizeres do próprio jornalista italiano, << a mentira, quando é demonstrável como tal, não tem direito à cidadania >>. Esta é uma verdade que anda muito esquecida em nossos dias, nos tempos hipócritas da "liberdade de expressão". Não há liberdade para a mentira; esta, deve ser combatida, de todas as formas possíveis e alcançáveis, de onde quer que ela venha.

Que a Virgem Mãe de Deus possa ser em nosso favor, e nos tornar cada vez mais melhores soldados de Cristo, soldados fiéis, conscientes do seu dever e dispostos a consumir a própria vida no serviço à Igreja, na defesa da Verdade, na construção do Reino de Deus.

Amém.


Referências:

[1] http://www.geocities.com/Athens/Aegean/8990/apolt0.htm
[2] http://marciax.uol.com.br/mxObra.asp?sMenu=2&sObra=26
[3] http://www.evandroprado.com.br/
[4] http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60751.shtml
[5] http://www.cleofas.com.br/virtual/texto.php?doc=noticias&id=M0212

28 março, 2006

Alegria e Esperança =)

Não é novidade para ninguém que me conheça, um mínimo que seja, o meu interesse pela Liturgia da Igreja e a minha predileção pelas "coisas antigas", pelo Rito do qual participaram os santos através de séculos de catolicismo, pelo Santo Sacrifício de Nosso Senhor celebrado segundo as fórmulas anteriores à Reforma Litúrgica do século XX.

Não pretendo, aqui, fundamentar a minha opinião sobre a Reforma, nem explicar detalhadamente ambos os ritos e a diferença entre ambos, nem nada disso. Hoje, quero apenas aproveitar o Gaudete et Laetare do domingo último para expressar a minha felicidade e as minhas mais vivas esperanças em relação às mudanças que se anunciam no Horizonte da História, e que, lá longe, em Roma, já podem ser visualizadas.

Os órgãos de imprensa estão anunciando, abundantemente, esses dias, que o Papa está interessado no problema dos lefebvristas e do Missal de S. Pio V. Para quem não está por dentro da situação, uma rápida pincelada no quadro geral:

Lefebvristas são os membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por D. Marcel Lefèbvre. São padres que não aceitaram o Concílio Vaticano II e o Missal promulgado por Paulo VI, tendo permanecido na celebração da Missa Antigo, no rito de S. Pio V. Hoje, encontram-se oficialmente em cisma, e em negociações com a Santa Sé para que possam voltar à comunhão da Igreja. Cabem muitas considerações aqui, mas não as vou fazer por hoje.

O Missal de S. Pio V é o missal que contém o rito da missa celebrado até cerca de quarenta anos atrás, antes da Reforma Litúrgica. Hoje em dia, só pode ser celebrado sob licença especial do Bispo local. Também aqui cabem muitas considerações, mas, como disse no início, não as vou fazer.

Pois muito bem: pelas notícias que me chegam, parece-me que Sua Santidade Bento XVI estaria pensando em um acordo de reconciliação com os padres da Fraternidade, e em uma liberação universal do Missal de S. Pio V. Se isso vier realmente a acontecer, teremos dois efeitos maravilhosos:

1- Todos os seminários da Fraternidade estarão a serviço de Roma. E (apesar de algumas questões sobre as quais não vale a pena entrar em detalhes agora) todos dizem que seus seminários são excelentes.

2- A Missa de São Pio V poderá ser celebrada livremente, sem a necessidade da licença do Bispo Local que, hoje em dia, é o maior entrave à popularização desse rito.

Esses efeitos, a meu ver, são maravilhosos porque:

1) A presença de bons seminários seria uma valorosa ajuda para elevar o péssimo nível dos sacerdotes que (com honrosas exceções) (des)orientam os católicos, nesses nossos dias difíceis.

2) A presença regular de missas celebradas segundo o rito antigo seria uma valorosa ajuda para resgatar o senso de sagrado que (novamente, com honrosas exceções) não existe nos católicos atuais.

As notícias são animadoras. O Pastoralis[1] noticia:

O Cardeal Francis Arinze, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, abordou, à tarde o tema da reforma litúrgica pós-conciliar e a utilização do Missal de São Pio V. Sobre este assunto se destacou o interesse do Pontífice em escutar o parecer dos cardeais sobre se o Missal, vigente até 1962, deveria receber um indulto universal; quer dizer, se poderá ser utilizado livremente na Igreja, sem necessidade de uma aprovação explícita do Bispo local, como atualmente requerem as normas.

O ZENIT[2] nos diz que, numa reunião na Quinta Feira última para discutir os grandes desafios que a Igreja enfrenta atualmente, foram colocados três temas de particular importância: a Igreja e o Islã, a questão dos bispos eméritos, e as negociações com a Fraternidade São Pio X.

De minha parte, fico feliz que as coisas estejam tomando este rumo. Ano passado, chateado com a nulidade dos meus esforços para que a Liturgia da Igreja fosse adequadamente celebrada na paróquia que frequento, escrevi (5 de agosto de 2005[3]), em tom de desabafo:

Estou cansado de missinhas animadazinhas, estou cansado de padres que parecem muito mais organizadores de encontros sociais que Sacerdotes do Deus Altíssimo, estou cansado de 'fiéis' que vão à missa para 'viver o amor de Cristo' e não para participar do Sacrifício do Filho de Deus! Será que sou só eu? Será que somente eu sinto vontade de poder assistir duas missas iguais, independente de quem seja o celebrante? Será que sou só eu que tenho dificuldade em enxergar, na Igreja, o Cristo Vítima e Sacerdote por detrás dos cantos protestantes no momento da consagração?

E terminei, em súplica, com o salmista:

"Voltai, ó Deus dos exércitos; olhai do alto céu, vede e vinde visitar a vinha.
Protegei este cepo por vós plantado, este rebento que vossa mão cuidou.
Aqueles que a queimaram e cortaram pereçam em vossa presença ameaçadora.
Estendei a mão sobre o homem que escolhestes, sobre o homem que haveis fortificado.
E não mais de vós nos apartaremos; conservai-nos a vida e então vos louvaremos.
Restaurai-nos, Senhor, ó Deus dos exércitos; mostrai-nos serena a vossa face e seremos salvos."
(Sl 79, 15-20)

Agora, vários meses depois, alegro-me sobremaneira em ver a minha prece - na época tão distante, e tão improvável! - ganhar traços de realização. Louvado seja Deus! E que rezemos, incessantemente, confiantemente, para que o Espírito Santo produza a autêntica renovação da Sua Igreja, para a maior glória de Deus e salvação das almas.
Referências:

06 março, 2006

És pó, e pó te hás de tornar - por Gustavo Souza

“És pó, e pó te hás de tornar.”(Gen 3,19)

Na Quaresma, somos convidados a reconhecer esta verdade profunda que encontramos logo nas primeiras páginas da Sagrada Escritura. È um tempo de arrependimento e de conversão apropriado para aqueles que, reconhecendo-se longe do Senhor, desejam – como o Filho pródigo - regressar à Casa paterna, na qual há “pão com fartura”.(Lc 15,17)

A Igreja faz uma convocação geral, como nos tempos do profeta Joel (Jl 2,12-18), propondo a todos que se reconheçam pecadores, indignos da Misericórdia Divina, e se penitenciem praticando a oração, o jejum e a esmola. Não acho que seja necessário conceituar cada um destes. E acho igualmente desnecessário repetir os apelos que a Igreja faz e que a Palavra de Deus constantemente nos recorda. Prefiro partir para o oposto disso: gostaria de dizer o que não é oração; o que não é jejum, e o que não é esmola.

Tenho percebido que, hoje em dia, a oração - principalmente nos grupos de oração - não é mais diálogo, como propõe Santa Catarina de Sena, a Dominicana mais penititente que o mundo já conheceu. È como se rezar se resumisse a falar, falar e falar. Não há mais os momentos de escuta do Senhor. Não há mais a voz que ressoa no silêncio. O eco que se propaga na alma do homem. O louvor de hoje em dia, muitas vezes se assemelha ao balançar das folhas de uma árvore: não mexe na sua raiz, não a faz produzir frutos, é, simplesmente, resultado do vento que passa...

Temos feito orações mal feitas. Orações que não se comparam jamais àquelas feitas pelo Senhor! Pois Jesus não só rezava: Jesus rezava bem. Jesus rezava com confiança: “Pai eu te dou graças porque me ouviste” (Jo 11,41). Orava com fervor: “Então Jesus exultou de alegria e disse: Eu te louvo Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos”.(Lc 10,21) Rezava colocando acima de tudo a vontade de Deus: “Se queres, afasta de mim esse cálice”(Mt 26,39). Rezava com sinceridade: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). Não rezava com a falsidade que muitas vezes nos faz dizer a Deus o “eu Te amo” mais vazio que alguém pode ter ouvido. Certamente Jesus não faria do terço um vomitar de palavras no ouvido de Nossa Senhora, como nós amiúde fazemos...

Aliás, faço aqui uma distinção conveniente e mui útil para que reconheçamos como é imperfeita a nossa oração: oração anestésica é diferente de oração transformadora! Oração anestésica é aquela que resolve meus problemas atuais. É aquela oração do tipo reboco, tapa-buraco. A oração transformadora, porém, tem efeitos profundos no nosso comportamento e mentalidade. Mas, não gostamos dela porque ela produz resultados a longo prazo e nós somos muito imediatistas... Enquanto a oração anestésica me mantém vivo, a oração transformadora me faz viver. Para ilustrar: Se alguém me machuca e eu faço a seguinte oração: “- Senhor, arranca do meu coração a mágoa que essa pessoa me causou. Preenche com o teu amor o vazio que essa pessoa me deixou”, estou tomando um anestésico espiritual. Estou me livrando daquele rancor específico, e todas as vezes que essa pessoa me machucar vou ter que repetir a mesma oração. Nunca conseguirei entender o que é o perdão. Jamais compreenderei o porquê daquela atitude. Não entenderei que quando perdôo alguém não estou me livrando de um a mágoa, estou me tornando livre para amar. A oração transformadora, todavia, me permite enxergar toda essa realidade, porque mexe nas minhas bases, nas minhas estruturas. Ela muda a minha conduta, me dá uma lição de vida e me tira da superficialidade que comumente afeta a relação do homem com o seu Criador.

Além disso, Jesus rezava em segredo: “... subiu à montanha para orar na solidão” (Mt 14,23). Seguindo o preceito que lê mesmo instituiu: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa.
Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á”(Mt 7,5-6)

Depois, é preciso falar a respeito do jejum e de outras renúncias. Tenho visto um mal muito grande se espalhando entre nós, católicos: é a síndrome do “coitadinho de mim”. É a nossa autopiedade. Dizemos que não jejuamos porque estamos morrendo de fome. Quando, na verdade, a maioria de nós não tem a mínima noção do que significa morrer de fome... Sem falar daqueles jejuns absurdos, que alguns escolhem fazer: “- Durante toda a Quaresma não vou tomar suco de cupuaçu”.Se eu não gosto de suco de cupuaçu, que valor tem essa renúncia? Sem contar aqueles penitentes do tipo autofalante, que saem alardeando aos quatro cantos qual o objeto da sua renúncia durante a Quaresma: “- Por amor ao Senhor, nesses quarenta dias, não vou comer chocolate”. Balela, conversa fiada. Quer é emagrecer. Está dando a Deus aquele famoso “presente de grego”.

Penso que santos como Santa Catarina de Sena, São Francisco de Assis, São Domingos, e tantos outros, reconhecidos pela prática constante do jejum e da penitência, muito se envergonham dessa nossa conduta. Não só eles, mas também penitentes desconhecidos da maioria de nós, como os monges cartuxos. Estes, professam um a regra de vida tão austera que nunca comem carne, nem mesmo quando estão doentes. Certa vez, o papa Urbano V, quis mudar essa regra, tornando-a mais branda. Os monges, porém, contestaram, enviando ao Sumo Pontífice uma Delegação de 27 religiosos. Entre estes, o mais jovem tinha 88 anos! Diante disso, o Santo Padre desistiu dos seus planos de alterar a regra. Esta, parecia não fazer mal algum a saúde - nem do corpo, nem da alma - dos monges...

E, por fim, mas não menos importante, creio que devemos rever a nossa concepção de esmola. Não estou falando de uma doação forçada, como muitas vezes fazemos, por pressão social. Nem estou falando do assistencialismo barato que nos faz jogar aos miseráveis, as moedas que nos pesam nos bolsos. Não me refiro à doação feita por pena, mas sim por obra de misericórdia. Não estou me referindo a uma obrigação cristã, como é o dízimo, mas sim a uma contribuição voluntária, feita por amor e destinada a anônimos cujo nome é Jesus.

Também não quero associar à esmola àqueles casos de filantropia que vemos quando ocorre um grande desastre, como foi o Tsunami algum tempo atrás. Aquilo não é esmola! “Os países ricos se mobilizaram para ajudar”.Para ajudar a quem? A si mesmos, incluindo seus nomes entre os países “bonzinhos” que compõem a lista de doadores! Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo; e teu Pai, que vê o escondido, recompensar-te-á” (Mt 7,2-4). Quantos dos famosos artistas generosos que fizeram doações milionárias às vítimas do tsunami compareçam lá, ao local do desastre, dando por esmola seu tempo, sua atenção e sua verdadeira solidariedade? Esmola não é sinônimo de dinheiro!

Diante de tudo isso, resta-nos reconhecer que somos pó e ao pó retornaremos. Contudo, não esqueçamos que importante é estar nas mãos de Deus, pois o pó nas mãos do Senhor é barro, o qual se torna obra de arte quando modelado pela vontade do Divino Oleiro. Quiçá um dia nos tornemos preciosos vasos, prontos a guardar os tesouros do Senhor. Se queremos alcançar essa graça, penso que devemos começar guardando esse tempo de Graça e Misericórdia que a Igreja nos concede, a Quaresma. Deus nos abençoe!

13 fevereiro, 2006

Publicai-o de cima dos telhados

"O que vos digo na escuridão, dizei-o às claras. O que vos é dito ao ouvido, publicai-o de cima dos telhados". (Mt 10,27)

A Religião Verdadeira, a Religião do Verbo Encarnado, é a Religião que deve ser "anunciada de cima dos telhados". Porque a Verdade é um bem e, sendo um bem, a Caridade nos manda compartilhá-la com todas as pessoas. A Igreja sempre considerou o ensino dos ignorantes como obra de misericórdia espiritual. Ensinar faz parte da Sua própria constituição, da Sua própria razão de ser, obediente ao mandamento de Cristo que mandou "ensinar a todos os povos".

A Igreja sempre foi o rochedo inabalável, contra o qual se despedaçam todos os erros e heresias. Os católicos sempre foram os "soldados de Cristo", valentes guerreiros que, na brecha da muralha, batiam-se contra os inimigos da Verdade, denunciando abertamente - de cima dos telhados - os erros do seu tempo.

Isso porque não há nada tão pernicioso para a Verdade quanto a livre-disseminação do erro. A Verdade não pode permitir que o erro seja colocado a seu lado, em pé de igualdade. Igualmente, os que amam a Verdade precisam odiar o erro. Precisam combatê-lo com todas as suas forças. Como nos diz aquela passagem bíblica, do profeta Isaías:

"Por amor a Sião, eu não me calarei, por amor de Jerusalém, não terei sossego, até que sua justiça brilhe como a aurora, e sua salvação como uma flama". (Is 62,1)

Isso reflete bem a vida do católico, enquanto soldado de Cristo, membro da Igreja Militante: ele não pode se calar, por amor a Deus, por amor à Verdade! Não ama a Verdade quem não odeia o erro. Ele não pode ter sossego enquanto o erro grassa a olhos vistos, no mundo, obscurecendo o esplendor da Verdade. Ele não pode descansar, enquanto que o Sol da Justiça - Cristo - não brilha forte no mundo.

O católico precisa anunciar a Verdade de cima dos telhados. Precisa se opôr aos erros firmemente. Precisa denunciá-los claramente. Porque a Verdade não pode ser relativizada em prol de uma convivência pacífica, e nem pode ser sacrificada em atenção aos melindres dos que erram.

Como, aliás, sempre o fizeram os santos de todos os tempos; como não encantar-se com o vigor com o qual São Jerônimo defende a Virgindade Perpétua de Nossa Senhora? Ou a ironia com a qual Santo Ireneu debocha dos gnósticos do seu tempo? Ou o peso das palavras com as quais Santo Tomás fulmina os maniqueus medievais?

Só a título de ilustração, transcrevo o estilo de Santo Ireneu, a atacar os erros dos gnósticos, em fins do século II:

Vejamos agora as inconstantes doutrinas deles [dos gnósticos]. São duas ou três, e como falam de forma diferente sobre as mesmas coisas e, servindo-se de nomes iguais, indicam objetos diferentes. [...][H]á uma Díada inefável, um dos elementos chama-se Inexprimível, o outro Silêncio. Esta Díada emitiu outra Díada, um elemento dela chama-se Pai e o outro Verdade. Esta Tétrada frutificou o Logos e a Vida, o Homem e a Igreja: eis então formada a primeira Ogdôada. Do Logos e da Vida emanaram dez Potências: uma delas se afastou, foi degradada e fez o restante da obra da fabricação.

[...]

Outro [...] ensina que a primeira Ogdôada abrange uma Tétrada da direita e uma da esquerda, uma é a Luz, outra as Trevas. A Potência que se afastou e foi degradada, diz que não deriva dos 30 Eões, mas de seus frutos.

[...]

Outro ilustre mestre deles, dotado de gnose mais sublime e profunda, expõe assim a primeira Tétrada: existe, antes de todas as coisas, um Pró-princípio pró-ininteligível, inexprimível e inominável que chamo Unicidade. Com ele está uma Potência que chamo Unidade. Estas, Unicidade e Unidade, que são uma coisa só, emitiram, sem emitir, um Princípio inteligível, ingênito e invisível, ao qual dou o nome de Mônada. Com esta Mônada está uma Potência da mesma substância, que chamo Um. Estas Potências, isto é, Unicidade e Unidade, Mônada e Um emitiram os restantes Eões.

Ha! he! ah! ah! Valem estas exclamações trágicas diante desta audácia em inventar nomes e aplicá-los despudoradamente a esta mentirosa invenção. Com efeito, quando diz: Existe antes de todas as coisas um Pró-princípio pró-ininteligível que chamo Unicidade e com ele está uma Potência que chamo Unidade, mostra claramente que são ficção todas as palavras que pronunciou e que deu a estas ficções nomes que ninguém antes dele lhes deu. Se não tivesse esta ousadia, segundo ele, ainda hoje a verdade estaria sem nome. Por isso, nada impede que outro qualquer, ao tratar deste assunto, use estes nomes: Existe certo Pró-princípio soberano pró-esvaziado-de-inteligibilidade, pró-esvaziado-de-substância e Potência pró-pró-dotada-de-esfericidade, que chamo Abóbora. Junto com esta Abóbora coexiste uma Potência que chamo Super-vacuidade. A Abóbora e a Super-Vacuidade, sendo um só, emitiram sem emitir um Fruto visível de qualquer lugar, comestível e saboroso, ao qual dou o nome de Pepino. Junto com este Pepino existe uma Potência da mesma substância, que chamo Melão. Estas Potências, isto é, Abóbora e Super-vacuidade, Pepino e Melão emitiram a multidão restante dos Melões delirantes de Valentim. Com efeito, se é necessário ajustar a fala comum à primeira Tétrada e se cada um escolhe os nomes que quer, o que impede usar estes nomes muito mais inteligíveis, usuais e conhecidos de todos? (Santo Ireneu, Contra as Heresias[1], Livro I, Parte II, 11,1-11,4. Grifos meus)

Que falta faz esse estilo, no mundo pagão em que vivemos hoje! Como ele soa "rude", "grosseiro", "politicamente incorreto"! Como ele é "intolerante", "fundamentalista", como ele "desrespeita" as "crenças alheias"! Contudo, este é o estilo dos santos. Que eu, na medida das minhas parcas capacidades, procuro imitar.

Porque, como disse o Papa São Felix III, citado por Leão XIII na sua Encíclica Inimica Vis:

<< Aprova-se um erro, caso não se resista a ele; suprime-se uma verdade, caso não se A defenda. [...] Quem não se opõe a um crime evidente, abre-se à suspeita de secreta cumplicidade. >> (Inimica Vis[2], 7)

E os católicos não podem ser cúmplices de erro algum. Não podem abrir mão de defender a Verdade. Sempre de cima dos telhados, sempre de maneira clara, sem meias palavras e sem ambigüidades.

Mas, infeliz e lamentavelmente, os católicos de hoje em dia, em sua grande maioria, não são adeptos do estilo claro dos santos. Pelo contrário, proclamam a Verdade apenas em sussurros, emitindo, publicamente, opiniões as mais genéricas e abrangentes possíveis, recusando-se a condenar, recusando-se a denunciar. Talvez por medo de parecer "anacrônicos", talvez por medo de "magoar" os que erram, talvez em observância a alguma política de boa convivência. Não sei.

Como sempre faço, dou exemplos. Dois. Ambos sobre a CNBB.

Primum: terminou, recentemente, no dia 29 de janeiro último, o VI Fórum Social Mundial, um encontro de terroristas de esquerda em patente articulação para o seu plano maquiavélico de implantar o socialismo na América Latina. Desse encontro, no qual foram tecidas loas a Che Guevara e no qual o presidente venezuelano Hugo Chávez exclamou frases de efeito como "Socialismo ou Morte!"[3], a CNBB emitiu um cândido artigo[4], visivelmente favorável ou, quando muito, indiferente ao citado encontro; e passou em silêncio absoluto todas as críticas que deviam ser feitas a ele. Oras, como é que existe um encontro internacional que defende manifestamente a implantação do socialismo na América Latina, e a CNBB noticia o encontro omitindo meticulosamente os fatos lá ocorridos que são condenáveis à luz da Doutrina Católica? O que justifica isso?

Secundum: é sabido que está em trâmite um Projeto de Lei[5], que pretende liberar o aborto no país.

É sabido que a CNBB é a responsável pela Campanha da Fraternidade. O citado projeto de Lei já tem quinze anos (é de 1991) e, nos últimos dez anos, nenhuma campanha da fraternidade[6] teve como tema o aborto. E nem o terá a próxima, de 2007. Levando em consideração que a CNBB gastou dinheiro, ano passado, com propaganda a favor de uma lei bolchevique contrária à Doutrina Católica (o referendo do Desarmamento), cabe perguntar: por que não é feito algo parecido para se condenar o aborto? Por que as Campanhas da Fraternidade versam sobre tudo, menos sobre a vida humana indefesa que é atacada?

Para não ser injusto, é preciso reconhecer que há alguns comunicados da CNBB contra o aborto. Contudo, voltemos ao ponto de vista doutrinário. É sabido que quem comete aborto incorre em excomunhão latae sententiae, bem como todas as pessoas que cooperam com o ato - o namorado, a amiga que aconselhou a clínica, a tia que deu dinheiro, etc.

Todo mundo sabe disso? Não. Mas quem consegue encontrar essa informação nos comunicados existentes no site da CNBB? Eu não encontrei. Por que o silêncio? Por que a recusa sistemática em informar a população católica brasileira de que, quem coopera com o aborto, está excomungado da Igreja?

A esmagadora maioria dos católicos brasileiros não sabe o que é o catolicismo (sobre isso, talvez eu fale num próximo artigo). Mas é claro: como é que eles podem saber, se não têm quem lhes ensine? Como é que eles podem aprender, se não se usa mais o estilo claro dos santos, do "sim, sim, não, não"?

Tenha Deus misericórdia do Seu povo, que perece por ignorância. E que nós possamos fazer a nossa parte, anunciando de cima dos telhados aquilo que nos foi ensinado; para que, coerentes com nossa posição de católicos militantes, defendamos a Verdade contra os erros e contribuamos para que o Sol da Justiça - Cristo Deus - brilhe sobre a terra.

Amém.
Referências:

01 fevereiro, 2006

As coisas que não mudam

"Porque eu sou o Senhor e não mudo". (Ml 3,6a)

É fato facilmente verificável por qualquer um - embora, muitas vezes, possa passar despercebido por muitos - que o mundo moderno idolatra o "Progresso". Essa idéia de que a História caminha numa "evolução", sempre para um estado cada vez melhor; essa idéia de que as coisas estão em contínuo melhoramento; essa idéia de que mudanças são sempre necessárias, pois as coisas que não mudam levam o mundo à estagnação e à morte; essa idéia de que as coisas precisam ser constantemente "atualizadas", porque as coisas "antigas" estão sempre "ultrapassadas" e "não servem mais"; enfim, essas idéias todas conseguem penetrar nas pessoas quase que por osmose, quase que pela força, num bombardeio diuturno feito pelos mais diversos meios. E o homem moderno, sufocado que está por todas essas idéias que lhe são atiradas por todos os lados, muitas vezes é condicionado a tomá-las para si, sem nem perceber que o está fazendo. É condicionado a "pensar" assim, sem nem se perguntar por que o faz.

E essas idéias todas são inimigas da Religião. Existem coisas que não mudam, e essas coisas são exatamente o que há de importante neste mundo, o que o homem deve conseguir, aquilo de que o homem precisa. Deus não muda. E, quando um católico adota - às vezes sem o perceber - essas idéias das quais estamos falando, ele se coloca numa posição difícil e estranha.

Deus não muda. E existe, dentro do homem, uma sede de Deus: nos conhecidos dizeres de Santo Agostinho, Deus criou-nos para Ele, e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa n'Ele. Deus é o fim último do homem, é aquilo que ele deseja com todas as suas forças, é aquilo a que ele deve aspirar. Mas Deus não muda. E o que acontece quando o homem, que deveria aspirar às coisas que não mudam, é ensinado a pensar que as coisas precisam sempre mudar, e está absolutamente convencido (sim, essa contradição é possível e empiricamente verificável) disso?

Acontece que o homem perde o rumo. Desvia-se da sua meta, às vezes por não a reconhecer como tal (os que rejeitam manifestamente a Religião), às vezes por "inventar" outros caminhos - novos caminhos - para chegar até ela (uma estranha espécie de católico).

Cito um exemplo para ilustrar esse segundo caso. Durante séculos, o homem foi ensinado a passar das coisas sensíveis às realidades invisíveis, a subir do visível ao inefável. Esse é, aliás, um dos objetivos da Liturgia: conduzir, por meio dos sentidos, o homem às realidades superiores, que escapam à percepção humana. Deus não muda, mas os homens, na sua realidade temporal, mudam. Cumpre "contradizer", de alguma forma, isso que os homens percebem ao investigar o mundo.

Há uma música bonita de Suely Façanha que expressa bem isso:

A cada passo descobrir
Que o tempo esconde o que é Eterno.
E que tu és o sentido,
Ó meu Senhor,
De tudo!

Essa frase - o tempo esconde o que é Eterno - resume o que estou dizendo. O homem aspira ao Eterno, mas o tempo O esconde. O que é preciso fazer? Evidenciar, de alguma forma, esse Eterno. Chamar a atenção para as coisas que não mudam.

E chamar a atenção para as coisas que não mudam é exatamente um dos propósitos da Liturgia, em particular da Santa Missa. Essa deve exprimir, de maneira tão perfeita quanto possível, a Realidade que o homem precisa conhecer, a Realidade Imutável.

Só se pode amar aquilo que se conhece. Como os homens podem amar as coisas que não mudam, se são doutrinados a pensar que todas as coisas precisam mudar? Como os homens podem conhecer o que é Eterno, se este se esconde por trás do Tempo, e se as coisas que deveriam conduzir o espírito ao Eterno estão, também, impregnadas desse pensamento de que "tudo precisa mudar"?

Como o homem pode aprender a amar as coisas que não mudam, se ele é ensinado a odiá-las? Na Santa Missa, expressão máxima da Fé Cristã, que devia - insisto - conduzir a alma humana à contemplação do Imutável, o que aprendem os católicos? Que as missas são "monótonas" se forem sempre iguais. Que é necessário, num dia, dar uma bênção às carteiras de trabalho; n'outro, vestir-se de vermelho; n'outro, vestir-se de verde-e-amarelo e subir ao Altar cantando o Hino Nacional; n'outro, levar garrafas d'água para serem abençoadas e aspergir a casa; n'outro, abençoar as chaves de casa, do carro, et cetera, et cetera, et cetera. Num dia é necessário cantar tais e tais músicas, n'outro dia essas músicas estão ultrapassadas e é necessário cantar tais e tais outras, no outro dia ninguém agüenta mais essas músicas e o padre deveria deixar que cantássemos os últimos sucessos dos Ministérios de Música que existem! Como os católicos podem ser levados a amar as coisas que não mudam, se são condicionados, no mundo e - lamentavelmente - nas igrejas a idolatrarem o Progresso?

Deus não muda - como diz a epígrafe desse texto. E somos levados a esquecer essa verdade. Até quando...? Hoje em dia, especialmente, é difícil manter os olhos fitos no Eterno, porque mudam as coisas que deveriam nos levar a amar o que não muda. Que Maria Santíssima, inimiga de todas as heresias, possa nos livrar desse erro tão pernicioso e tão disseminado ao nosso redor, nesses tempos de Trevas. E que a Luz não tarde a resplandecer.

"Minha alma está muito perturbada; vós, porém, Senhor, até quando?..." (Sl 6,4)

A paz e as bênçãos de Deus.

21 janeiro, 2006

Eu mereço o Inferno.

Ninguém merece a própria salvação. Essa frase pode parecer protestante, mas não é. É catolicíssima. E achei por bem escrever algumas linhas sobre ela.


Quando nós falamos que a salvação não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus (Ef 2, 8), queremos dizer exatamente isso: o homem não merece a própria salvação, por mais que ele seja "bonzinho". Não a merece, porque a Salvação, a Vida Eterna, é coisa infinitamente maior do que tudo que o homem pode ser capaz de fazer.


A diferença entre a versão católica e a versão protestante desse conceito é a seguinte: para os protestantes, o homem absolutamente não merece a Salvação, de forma alguma, nem recompensa alguma dos Céus: é Deus que, sozinho, realiza todo o trabalho de salvar o homem. É o conhecido Sola Fide, que nega o valor das obras; estas servem tão-somente para "mostrar", "evidenciar" a Fé.


A versão católica diz que o homem não merece a Salvação, mas passa a merecê-la de uma forma bem específica: da forma que Deus determinou. Que forma é essa? Por meio da Graça Santificante: sozinho, o homem é incapaz de fazer qualquer ato que seja minimamente meritório; contudo, em Estado de Graça, as suas obras passam a merecer recompensas, porque são feitas unidas a Deus. O homem coopera com Deus na própria salvação. É a conhecida frase de Santo Agostinho: o teu Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti.


Esta foi a forma que Deus "encontrou" para tornar o homem co-responsável pela própria Salvação: embora os atos dele, por serem humanos, sejam ínfimos diante da Infinitude Divina e, justamente por isso, não sejam dignos de recompensa alguma, Deus vem "morar" na alma do homem e, a partir daí, as obras do homem são "também" obras divinas, por serem feitas em união com Deus e, assim, tornam-se dignas de recompensa.


Não sei se me fiz entender: as obras humanas, feitas sozinhas, não têm valor, porque o homem decaído não merece nada dos Céus. Já as obras humanas, feitas em união com Deus, têm valor, sim, por causa da Graça Divina que a elas dá esse valor.


Decidi escrever sobre o assunto porque percebo um problema sério na concepção de Deus que as pessoas, atualmente, têm: Deus deixa de ser Justiça, e passa a ser pura Misericórdia. As pessoas perdem a consciência do pecado, e perdem a consciência de que merecem o Inferno! Essa é uma noção que deveria estar sempre presente em todos os cristãos, não como desespero, que é pecado, mas como um humilde reconhecimento de um fato: eu mereço o Inferno.


Quais as consequências da noção de Deus como Pura Misericórdia, e do esquecimento do fato de que o homem merece o inferno? Vai-se para o outro lado e as pessoas defendem, às vezes inconscientemente, que o homem merece o Céu.


Chesterton, no seu livro "Ortodoxia", nos diz uma coisa muito interessante. Ele afirma que o dom da vida é uma graça absolutamente imerecida e que, por ser imerecida, o homem não tem direito de reclamar de nenhuma das "condições" inerentes a ela. E aí faz uma comparação com os contos de fadas. Reproduzo abaixo essa passagem:


As fadas madrinhas parecem, pelo menos, tão severas quanto as outras madrinhas. Cinderela recebeu uma carruagem vinda do País das Maravilhas e um cocheiro vindo não se sabe de onde, mas recebeu, também, uma ordem [...] - devia estar de volta à meia-noite.
[...]
Se Cinderela diz: "Por que eu tenho que sair do baile à meia-noite?", a madrinha poderia retrucar: "Por que podes ficar lá até a meia noite?".
(G.K. Chesterton, Ortodoxia, p.79-80. São Paulo, LTR, 2001)


Qual o pernsamento de Chesterton? Se uma coisa é extraordinária, ela pode, muito bem, ter condições também extraordinárias. Cinderela recebeu, de graça, da fada madrinha, uma ida ao baile; acaso poderia ela reclamar das "condições" nas quais o recebeu? Igualmente, o homem recebeu, de graça, de Deus, a possibilidade de ir para o Céu. Acaso pode o homem barganhar com Deus e exigir ir para o Céu de uma maneira diferente daquela que o Altíssimo determinou?


Isso tem uma aplicação concreta e visível na nossa vida de cristãos. Devemos sempre ter a consciência de que o nosso passaporte para as Moradas Celestes é uma coisa completamente imerecida, e que possui condições bem determinadas para que tenha validade. Não adianta reclamar "ah, eu tenho aqui o passaporte". Oras, por que você tem o passaporte?


O homem não tem direito à Salvação. Não a merece. E as pessoas dos nossos tempos se esquecem disso. Dou só dois exemplos.


O primeiro: um amigo dizia, dia desses, que a esposa dele, mesmo sendo separada e "casada" com ele, ia à Missa e comungava, porque "Deus sabia o que se passava no coração dela". Isso é uma aplicação concreta daquele pressuposto acima: "eu mereço o Céu". Oras, quem é que merece comungar? Ninguém. A comunhão é-nos dada gratuitamente, sem que mereçamos. E existem condições para que se comungue. Uma pessoa, que não merece comungar, exigindo o seu direito de fazê-lo, mesmo descumprindo as condições exigidas, é semelhante à Cinderela que bate o pé com a Fada Madrinha e exige ficar no baile até as três da manhã. Cinderela não tem esse direito. Nem a esposa do meu amigo.


O segundo: a salvação dos protestantes. É praticamente um dogma do senso comum que os hereges, porque "louvam a Deus" e "seguem a Cristo", estão fazendo a sua parte para se salvarem. Não estão. Isso é, de novo, a aplicação do princípio errado de que "o homem merece a Salvação". Parte-se do pressuposto que, por serem "bonzinhos", por "lerem a Bíblia", por "evitarem o pecado", os hereges "merecem" a Salvação. Não merecem. A Salvação é-nos dada gratuitamente, sem que mereçamos, e tem condições bem específicas para ser recebida, entre elas, a submissão ao Romano Pontífice. Descumprir essas condições e, ainda, esperar receber benevolência do Alto, é ser Cinderela de beicinho, duvidando de que, se ficar no Baile até depois da hora permitida, suas vestes de gala serão transformadas nos trapos da Gata Borralheira.


Por isso que o Magistério da Igreja sempre ensinou que é um erro "esperar bem da salvação eterna daqueles todos que não vivem na verdadeira Igreja de Cristo" (Syllabus, 17).


(Aqui, faço um rápido comentário, para dissipar possíveis equívocos sobre a Doutrina Católica: os protestantes e demais que vivem fora da Igreja não vão necessariamente para o Inferno. Porque a Igreja sempre ensinou que, fora de suas estruturas visíveis, há a salvação dos que estão em Ignorância Invencível, sobre a qual posso falar em outra ocasião. São, pois, dois erros opostos sobre os que vivem fora da Igreja: esperar que eles sejam salvos, ou negar-lhes qualquer possibilidade de salvação.)


São essas as considerações que julguei por bem fazer sobre esse tema. Que nós não nos esqueçamos, jamais, da moral da terra dos Contos de Fada; que nós, à semelhança de Cinderela, recebamos humildemente as graças que nos são concedidas junto com as exigências que nos são feitas, sem reclamarmos um pretenso direito que não temos. E que tenhamos sempre a consciência de sermos merecedores do Inferno; e, com os olhos voltados para o Alto, peçamos a Deus clemência e misericórdia, com a firme esperança de que Aquele que é Bom vai nos atender, não porque somos bonzinhos e fazemos tudo certinho, mas simplesmente porque Ele é Bom.


A paz e as Bênçãos de Deus.

10 janeiro, 2006

Aux Armes, Chrétiens!

O título do Blog - Aux Armes - é retirado da Marseillaise, o Hino Nacional francês. Embora retirado de uma péssima fonte - música revolucionária anti-católica -, o brado que é um convite à batalha soaria bem nos nossos tempos de comodismo e covardia. Porém, para evitar os sentimentos negativos que a similaridade com a música original poderia evocar, julguei por bem fazer uma importante substituição. Ao invés do "Aux armes, citoyens!" francês, pus um "Aux armes, chrétiens!" cristão. Às armas, cristãos! Este é um grito que bem poderia ter sido dado por Urbano II, ao convocar a Primeira Cruzada, e bem poderia ter motivado a resposta dos cavaleiros franceses: Dieu le veut! Deus o quer!

Aux armes, chrétiens! Eis que a Santa Madre Igreja é atacada por todos os lados, e importa que nós, enquanto soldados de Cristo, estejamos sempre em prontidão, para defendê-lA!

Aux armes, chrétiens! Eis que a Moral, Divina e Imutável, é diuturnamente ofendida e debochada, e eis que os atos mais bárbaros, moralmente inaceitáveis, são defendidos pelo Direito Positivo, e importa que cada um de nós, enquanto "outro Cristo" - Christianus Alter Christus -, possa dar um testemunho de vida em Seu favor!

Aux armes, chrétiens! Eis que o Reino de Cristo é constrangido e restrito à "esfera privada", eis que as grandes nações católicas sucumbem diante de um feroz laicismo, e importa que nós, enquanto servos de Cristo, trabalhemos pela construção do Seu Reino que pedimos no Pai Nosso!

Aux armes, chrétiens! Eis que a Verdade é ridicularizada, eis que o indiferentismo grassa solto, eis que o relativismo impera e os homens tentam colocar as suas próprias vontades como métrica última de todas as coisas, e importa que nós, enquanto cristãos, proclamemos a Verdade de cima dos telhados!

Aux armes, chrétiens! Eis que os inimigos da Igreja estão dentro mesmo d'Ela, traindo-A covardemente quando A deviam defender, e denegrindo-Lhe quando A deviam promover. N'outros tempos, Cristo Nosso Senhor expulsou a chicotadas os vendilhões do Templo. Hoje em dia, a Casa de Deus anda bem cheia de vendilhões. E importa que nós A defendamos, pelos que não A querem defender, e A anunciemos, pelos que não A querem anunciar.

Enfim! Aux armes, chrétiens! Dieu le veut!

04 janeiro, 2006

Encontramos o Messias!

"Invenimus Messiam" (Evangelium Secundum Ioannem, I, 41)

Essa é uma frase tirada do Evangelho de hoje. André, irmão de Pedro, após ter estado com Jesus, vai até o seu irmão e lhe diz: invenimus Messiam.

"André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido João e que o tinham seguido. Foi ele então logo à procura de seu irmão e disse-lhe: Achamos o Messias (que quer dizer o Cristo)". (Jo 1, 40-41)

Essa passagem pode muito bem ser tida como um resumo da busca pela Verdade, da sede de Deus que há na alma humana. André procurava o Messias. André encontrou o Messias. André anunciou o Messias.

Não é essa a ordem que devemos seguir? Temos sede de Deus, buscamos a Deus, encontramos a Deus, anunciamos a Deus. A mesma idéia está exposta em outras passagens das Escrituras, mas, aqui, ela é bem forte, é um claro chamado: se nós, verdadeiramente, encontramos a Cristo, devemos anunciá-Lo. Após encontrarmos o amor de Deus, após enchermo-nos dele, devemos naturalmente transbordá-lo.

Não é novidade para ninguém o caráter missionário do Evangelho. Mas quero chamar a atenção para o fato de que este anúncio, antes de ser um mandamento - e ele o é, como encontramos em outras passagens, tais como Mt X, 27 e Mc XVI, 15 -, é (ou pelo menos devia ser) um movimento voluntário, um impulso natural da alma que encontrou a Deus. Depois de um encontro com o Senhor, depois de encontrarmos o Messias, desejamos (ou pelo menos devíamos desejar) sair correndo à procura dos nossos irmãos, e dizer-lhes: invenimus Messiam.

Isso porque a Verdade é um Bem. E é próprio da Caridade - maior das virtudes - amar ao próximo. Amar é desejar o bem. Ora, que bem pode ser maior do que a Verdade? Portanto, amar o próximo é desejar que ele chegue ao conhecimento da Verdade. Por isso o anúncio - invenimus Messiam - é um impulso natural da Caridade, uma decorrência natural do encontro com Deus. Afinal, um encontro com Deus não deve (ou pelo menos deveria) aumentar em nós a Caridade?

Por isso, devíamos sempre ser como aquele mensageiro, do qual nos fala o profeta Isaías, e que cantamos, muitas vezes, na Aclamação ao Evangelho, lá na Missa:

"Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação, que diz a Sião: Teu Deus reina!" (Is 52,7)

Devíamos ser sempre como esse mensageiro, levando a Boa Nova e anunciando a libertação. Não uma "boa nova" qualquer, não uma libertação distante, mas uma libertação presente e atual, da qual somos provas vivas, uma libertação que vimos e ouvimos, que tocamos com nossas mãos (cf 1Jo 1, 1-3)! Só assim o nosso anúncio poderá ser verdadeiro, só assim ele poderá provocar conversões. Não devemos simplesmente dizer "há o Messias". Devemos, como testemunhas verdadeiras, dizer "encontramos o Messias"!

Mas, para dizermos isso verdadeiramente, é necessário que O tenhamos encontrado. E a doce afirmação do Evangelho - encontramos o Messias - pode se transformar numa angustiante pergunta: encontramos o Messias?

Se O encontramos, por que não somos tão ligeiros e prestativos em dizê-lo aos quatro ventos, de cima dos telhados? Se ainda não O encontramos, o que nos falta? Qual o problema?

Que possamos rezar - afinal, é na oração que o homem se encontra com Deus - nesse sentido. Rezemos, para que encontremos a Deus. Rezemos, para que O conheçamos e encantemo-nos com Ele. Rezemos, para que Ele aumente em nós a Caridade, e nos inflame a alma com um incontrolável desejo de correr até nosso irmão e dizer-lhe, com sinceridade: invenimus Messiam!